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  • Foto do escritorJulia Cortezia

Produção Além do Eixo: Como iniciativas estão promovendo políticas de descentralização do cinema

Regiões que não estão no eixo Rio de Janeiro-São Paulo tem mais dificuldades na hora da produção. Entenda as particularidades de cada uma e o que tem sido feito para melhorar a cena



Os editais são uma das formas de financiamento mais usadas na produção de cinema brasileiro. Entretanto, isso é apenas um dos vários desafios que passam os profissionais na hora de colocar em prática uma obra. Realizadores de cinema localizados nas regiões de fora do chamado “eixo”, que são as grandes capitais do Sudeste - com destaque para Rio de Janeiro e São Paulo, possuem ainda mais dificuldades nesse caminho.


O principal órgão regulador da área hoje é a Ancine, que vem promovendo medidas para a descentralização. Com o objetivo de tornar o cinema brasileiro diverso e regionalizado, o órgão aprovou o destino de 30% dos recursos do Fundo Setorial do Audiovisual para as regiões menos favorecidas: Norte, Nordeste e Centro-Oeste.


O Brasil vive atualmente um momento de crise no audiovisual, em um cenário desafiador. Apesar de o setor gerar 24,5 bilhões para a economia brasileira e fornecer mais empregos que o setor de turismo no Brasil, o governo atual de Jair Bolsonaro tem desapoiado a área, evidenciando as dificuldades de promover o seu desenvolvimento. O presidente já se pronunciou contra os orçamentos para projetos culturais e admitiu querer “buscar a extinção da Ancine”.


Assim, o processo de democratização é longo. O eixo lidera os meios de produção e exibição do cinema no país - de acordo com a agência Rio Negócios, em 2015 a cidade de Rio de Janeiro foi responsável por 75% da indústria cinematográfica, o que gerou US$ 620 milhões com filmes produzidos, correspondendo a 89% do total da receita da indústria de produção brasileira.


A cidade de São Paulo também se mostra líder na produção audiovisual. Um levantamento da SPCine mostrou que a cidade tem cerca de mil filmagens por ano, e representa 25% de toda a produção audiovisual do país. Em 2019, foram totalizadas 2,8 mil locações, ou seja, as obras rodadas nas ruas da cidade. Esse valor colocou a cidade à frente de outros centros do audiovisual, como Bogotá.


Historicamente, a cidade do Rio de Janeiro foi a primeira a ter desenvolvido o cinema no Brasil, sendo sede da primeira filmagem em terras brasileiras no ano de 1896 e também da primeira sessão de cinema. No ano seguinte, São Paulo era palco também de filmagens.


As duas capitais brasileiras, assim como o próprio nome diz, tiveram um grande desenvolvimento econômico planejado, o que refletiu em todos os setores, assim como o cinema. Logo, os centros de educação seguiram o padrão: Em 1991, havia apenas dois cursos superiores de Cinema no país, na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro.


Diante desse panorama, em 2003 foi criada a APCNN (Associação dos Produtores de Cinema do Norte-Nordeste) ministrada pelo cantor Gilberto Gil. Posteriormente ela se transformou na CONNE (Conexão Audiovisual Centro-Oeste, Norte e Nordeste), formada na união de produtores e cineastas dessas regiões pela busca da democratização do fazer cinematográfico.

“Quando se trata da dimensão da CONNE, estamos falando de 20 Estados mais DF, e de cerca de 1.600 produtoras independentes cadastradas na Ancine. A proposição é ampla e cooperativa, integrando as regiões e apoiando a diversidade. De 2009 a 2016, aproximadamente 2.000 projetos foram apoiados pelo FSA; destes, apenas 500 foram da CONNE. Ainda assim, no Nordeste, por exemplo, que teve 329 projetos incentivados, o montante de recursos representou R$ 71 milhões nesse período”.

Artigo publicado por Wolney Oliveira, cineasta e diretor da CONNE Nordeste em 2018.


As medidas apoiadas pela Ancine têm gerado discussão entre as localidades menos favorecidas. Assim, entrevistamos 4 produtores de cinema que fazem parte da CONNE para conhecer um pouco mais sobre o seu trabalho e os embates que passam na hora da produção.


Nordeste e o seu cinema de excelência promissor

O “Cinema Novo”, movimento que iniciou na década de 1950, tornou o Nordeste a principal fonte de inspiração dos cineastas. A arte torna-se engajada e preocupada com temas sociais, como a violência e a fome. Foi o primeiro momento de desenvolver uma identidade própria da cultura brasileira dentro do mercado.

Hoje o Nordeste mostra-se cada vez mais bem sucedido nesses resultados cinematográficos, que têm ganhado espaço em festivais internacionais. O ano de 2019 foi palco de grandes premiações de filmes brasileiros. Em sua maioria, todos realizados no Nordeste ou por nordestinos.

“Bacurau e “A Vida Invisível” foram premiados no Festival de Cannes no começo do ano. Em Roterdã, o prêmio foi para “No coração do mundo”. “Divino Amor” ganhou o prêmio em Sundance e no Festival de Berlim, e “Estou me guardando para quando o carnaval chegar” também foi premiado.

Keyti Souza, da Dendê Produções, acredita que estar localizado nas regiões mais concentradas no Sudeste é sim uma grande vantagem, mas destaca: “Isso vem sendo desconstruído aos poucos, seja com a realização dos eventos regionais como NordesteLab, que aproxima os produtores dessas regiões aos players, ou por iniciativas próprias das produtoras, ou ainda com ações de incentivo realizada pelas associações”.

“Acredito que os exibidores também perceberam que o público das diversas regiões quer realmente se ver representado, e ter produções de fora do eixo contadas por quem realmente conhece e vive aquilo, é estratégico. E esses são pontos positivos para abrir espaço para produtoras e produções regionais, mas que tem endereçamento nacional”, ela completa.

Keyti é formada em jornalismo, mas abraçou sua paixão por TV e cinema. Começou como jornalista em 2014 na Tem Dendê e logo se firmou na área do audiovisual. Em 2018, ela se tornou sócia da empresa. “Nossa atuação principal tem sido na produção de documentários para TV e cinema, e também produções de ficção. Nos próximos anos teremos dedicação maior à ficção”, ela afirma.

Sobre as dificuldades que as regiões de fora do eixo sofrem, ela afirma: “O financiamento da produção é sempre o maior entrave”. Ela aponta que a produção audiovisual é muito trabalhosa, desde a criação até a TV, streaming ou o cinema – o que é um fator comum em todas as regiões. “Mas se falarmos em incentivo e investimento, há sim uma parcela menor de recursos [para os fora do eixo], o que dificulta a produção", completa.


A união benéfica dos produtores do Norte


Assim como cada região do país, o cinema no Norte também tem suas características específicas que devem ser levadas em consideração nessa discussão. Esse mercado surgiu pelo seu atrativo de paisagens exóticas e povos de diferentes culturas, portanto europeus se deslocaram até a região para explorar esses recursos em suas próprias filmagens.


Um ano depois da chegada do cinema no Rio de Janeiro, em 1897, a primeira sessão de cinema do Norte ocorreu no Teatro Amazonas, em Manaus. Entretanto, a produção só se desenvolve anos depois do mercado já ter avançado nos grandes eixos, em meados de 1907. Nesse período, a empresa Fontenelle & Cia se torna a maior proprietária de salas de cinema de Manaus.

Contudo, o Norte não apresenta um grande cenário de exibição, com poucas salas de cinema na região. Clemilson Farias, um dos coordenadores do Matapi (Mercado Audiovisual do Norte), conta: “Em relação à exibição temos poucas salas de cinema, e as que têm estão com programação voltada para o cinema comercial - hollywoodiano em quase sua totalidade”.

O Matapi se consolidou como o evento de cinema e audiovisual que visa desenvolver o mercado da região. Entre seus objetivos, a promoção da circulação dos produtos produzidos na região serem direcionados para outras janelas de exibição. Também capacitam seus empreendedores para realizar negociações, promove conexões nessa cadeia produtiva, e gera acordos e patrocínios entre produtores, distribuidores e players.


“O objetivo é fomentar e fortalecer a cadeia produtiva do audiovisual e aumentar a competitividade da indústria criativa na Amazônia”, explica Clemilson. Ele acredita que o desenvolvimento do cinema na região foi dado graças a iniciativas anteriores: “A produção teve um aumento exponencial com as duas primeiras edições do Prodav 08, edital de financiamento de obras para a TV Pública. Foi possível a construção de um cenário promissor, alcançando números nunca antes vistos na história da região”, ele diz.


Em 2020, uma nova janela é aberta para o cinema da região Norte e a possibilidade de afirmação da sua identidade cultural no cinema: a Lei de Incentivo ao Audiovisual na região do Pará é aprovada por unanimidade. O projeto disciplina a promoção, o fomento e o incentivo ao audiovisual do Estado do Pará e cria o Conselho Consultivo do Audiovisual.


A medida torna-se um instrumento de política pública de fomento e geração de emprego e renda. A cidade do Pará também é a única que conta com um curso regular de cinema e audiovisual em toda a região Norte. A Universidade Federal do Pará é quem fornece o curso. “Muitas vezes temos que sair da região para estudar”, conta Clemilson, e aponta essa como uma das grandes dificuldades de desenvolvimento da indústria na região.


“Na produção temos poucas oportunidades para financiar os projetos. E para acessar um recurso federal, além de superarmos o problema na formação, temos que superar o preconceito regional, pois a produção daqui ainda é vista com mais desconfiança pela capacidade de gerenciamento e resposta artística”, ele conta.


Esse preconceito regional se expande também nos cuidados específicos que a região requere. “A dificuldade mais particular daqui é o custo amazônico, que impacta diretamente a produção pelas questões geográficas. O aluguel e a manutenção dos equipamentos são caros por conta da umidade e o deslocamento para certas regiões é de alto custo pela complexidade de acesso”, afirma Clemilson.


Elen Lynch, cineasta com foco em direção, roteiro e fotografia explicou que uma das maiores dificuldades da região Norte é também o acesso, já que a criação de meios de diálogos entre as localidades é algo muito novo. “Seja no acesso aos recursos, á formação, a estar no meio. Uma das maiores dificuldades era como a gente, produtor do Norte e Nordeste, entramos no circuito dos grandes investimentos, das grandes produtoras e distribuidoras”, ela conta.


Elen é dona da produtora Eparrêi Filmes, junto de sua companheira. Com cerca de apenas 5 anos de existência, a produtora é sediada em Manaus, e já realizou diversos tipos de produção, como curtas, séries de ficção, documentários e filmes. Sua especialidade é a realização de obras com olhares mais críticos sobre gênero, etnia e classe social.


A cineasta é formada em ciências sociais pela Federal do Amazonas (UFAM), onde descobriu sua vocação no audiovisual a partir do cineclube da universidade e de uma professora que utilizava muitos filmes em sala de aula. Ela conta que veio do interior onde não tinha salas de cinema, então foi na faculdade onde teve maior aproximação com essa experiência.


Assim, ela seguiu seu sonho e foi fazer cinema na Universidade Federal do Paraná (UFRP) na Bahia, entrando em contato com o mercado também na região Nordeste. Hoje, a Eparrêi Filmes concentra sua energia criativa no Amazonas e desenvolve atividades na Bahia através da Rede Eparrêi.


E é nesse cenário onde se fortifica e se tornam essenciais iniciativas que visam desenvolver os seus mercados e estabelecer comunicações entre as regiões, como o Matapi. “Eu acho que pensar exemplos como o Matapi, o Mahaú que é do Pará são eventos que ajudam a agregar as produtoras e produtores e ajudam a nos colocar no circuito”, ela exemplifica.


Intelectual e propensa, a região Centro-Oeste segue no avanço


A produção de filmes na região Centro-Oeste tem grande dependência de políticas públicas de fomento. Sua localização abriga a sede política do país, o que evidencia os problemas existentes na falta de apoio e suporte que o atual governo mostra em relação ao setor cinematográfico.


A região ainda assim apresenta destaques animadores. O estado de Goiás se desenvolveu e hoje possui cursos de ensino superior de cinema com alto nível de performance, de acordo com o Guia do Estudante, como a Universidade de Brasília (UnB) e o Instituto de Educação Superior de Brasília (IESB-DF) no Distrito Federal, e a Universidade Estadual de Goiás (UEG), em Goiânia.


Existe também o curso na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), que deu início ao importante Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá - o primeiro do estado, que estimulou a vinda de produções brasileiras na região. A qualidade de cursos de educação do cinema só mostra o quanto a região pode contribuir para o setor, se estimulada.


Mesmo com os obstáculos, a resistência continua. Podemos citar iniciativas como o Sapi, mercado de cinema criado em Goiânia. No centro do país, também é destaque o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (FBCB). É o mais antigo e tradicional festival do Brasil, tendo início em 1965 como Semana do Cinema Brasileiro. Em 2007, o Festival recebeu o registro de Patrimônio lmaterial pelo Governo do Distrito Federal.

Renato Barbieri, dono da Gaya Filmes e morador de Brasília, conta que as políticas da Ancine foram de grande importância para o crescimento de produções em todas as regiões do Brasil. “Veja o exemplo do Cinema de Pernambuco! Mas também da Bahia, do Ceará, do Pará, do Amazonas, de Goiás e, claro, de Brasília. Esses estados e outros do CONNE produziram filmes relevantes que conseguiram se nacionalizar e atravessar a fronteira, participando de festivais e mercados internacionais. São filmes dotados de forte brasilidade e impacto”, ele afirma.

Renato possui 37 anos de carreira como diretor. Foi diretor do Jornal de Vanguarda na Band e de alguns programas na TV Cultura. Decidiu ingressar na área quando estudava psicologia em São Paulo e morava em um coletivo audiovisual, e com a ajuda dos seus companheiros de casa, resolveu fazer um vídeo para um de seus trabalhos. Desde então, deslanchou na área e hoje tem vários curtas premiados, como “Do Outro Lado da Sua Casa” e “Duvideo”, além de ser dono da produtora Gaya Filmes, voltada para conteúdo audiovisual de relevância social e ambiental.


Ainda sobre as políticas públicas, ele completa: “As empresas estatais e os editais públicos ajudaram a criar um parque cinematográfico nacional pujante. No momento, estamos vendo um desmonte lamentável e quase generalizado dos mecanismos ligados às políticas públicas, pois o cinema e o audiovisual têm um papel essencial na produção da Cultura e da identidade de um povo”, completa Renato.


Seriam os 30% suficientes?

A Lei da TV Paga, Nº 12.485, foi estabelecida no ano de 2011 configurando uma nova dinâmica no segmento do audiovisual brasileiro. Ela determina que no mínimo 3h30 da programação do horário nobre dos canais de espaço qualificado, por semana, seja reservada para conteúdos brasileiros. Também obriga a presença de canais brasileiros dentro dos pacotes de TV por assinatura.


A Lei foi aberta para a parceria com empresas de telecomunicação, como a Claro e a Embratel, ampliando a oferta e diminuindo assim o custo a ser pago pelo consumidor. Recentemente, por interesses, a Anatel e o Ministério das Comunicações expressaram sua vontade em reformular a Lei e propor algumas mudanças, o que tem preocupado a Ancine pela possibilidade da perda de suas suadas conquistas.


O inciso I do art. 27 é o que determina o mínimo de 30% das receitas da CONDECINE – Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional – para produtoras brasileiras estabelecidas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.


Todos os 4 produtores de cinema e audiovisual das regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste entrevistados para essa reportagem apontaram que ainda existem falhas na prática do inciso da lei, precisando da efetividade de mais soluções para o problema. Esses foram os seus relatos:

"A reserva tem colaborado muito, sem dúvida. Até 2016 eram quase duas mil produtoras audiovisuais brasileiras das regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste registradas na Ancine. Um número significativo que vinha produzindo com muito pouco e competindo com a produção do eixo que tinha muito mais recursos, inclusive do mercado privado, para produzir. Mas a reserva dos 30% é prevista para todos os mecanismos da Lei do Audiovisual, não apenas para o FSA, ou seja, deveria ser aplicada também aos artigos 39, por exemplo, e ser cobrada a aplicação em toda a lei. Infelizmente o que estamos vivendo agora é de fato um sucateamento da cultura e do audiovisual, um dos mais importantes componentes do PIB nacional." Keyti Souza
"Nos últimos anos as cotas não veem sendo respeitadas como deveriam e pouco aproveitadas. Se forem aplicadas de fato como devem ser, elas serão muito efetivas. Para a democratização da produção de cinema, pode ser feito a abertura de mais linhas de fomento específicas para o audiovisual, principalmente nos estados e municípios, cumprimento das políticas afirmativas. Em relação ao incentivo federal poderia haver uma radicalização nos indutores de raça, gênero, localização geográfica." Clemilson Farias
"Eu acho que a maior coisa para se pensar na descentralização é pensar em uma política pública que seja descentralizada, que faça com que as nossas produtoras possam sobreviver no local em que estamos; É preciso pensar melhor nas universidades, nos centros, na formação fora do país. É um setor que ainda precisa se fortalecer, e o Brasil só teria a ganhar. Alguns editais e políticas que tinham essa reserva de recurso necessitavam que a gente tivesse uma série de outras coisas que às vezes quem estava em regiões um pouco mais afastadas tinham maior dificuldade, como por exemplo a necessidade de distribuidora. Houve sim essa reserva, mas a política ainda não foi completamente efetivada. A tentativa pelo menos foi importante e louvável." Elen Lynch
"Em alguns anos, ela foi cumprida e em outros nem tanto, mas a produção se desenvolveu e bem. As políticas públicas que estavam sendo implementadas estavam avançando e se aprimorando no que diz respeito à descentralização da produção e com alguns avanços nas questões de gênero e raça, com alguns editais voltados para mulheres, afro-brasileiros e indígenas. Vivíamos um avanço e agora vivemos um tremendo retrocesso." Renato Barbieri

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