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  • Foto do escritorGabriel Leite

A resistência e responsabilidade do CachoeiraDoc

Chegando à nona edição, tradicional festival de documentários da Bahia busca cinema "descolonizado"

Na foto, sessão do IV CachoeiraDoc em 2013. A última edição foi predominantemente online (Foto: Geovane Peixoto)


Aconteceu entre os dias 4 e 20 de dezembro a nona edição do CachoeiraDoc, festival de documentários do município de Cachoeira (BA). A programação contou com 42 filmes exibidos virtualmente e 13 filmes exibidos presencialmente, além de atividades artísticas, oficinas, conferências e lançamento de livro online, tudo gratuito.


Desde o início, o CachoeiraDoc relaciona-se intimamente com o município de Cachoeira, em especial com o curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo Baiano. Desse modo, os objetivos do evento se entrelaçam com os objetivos do município. "Construímos nossa programação considerando, além dos pressupostos estéticos implicados nas obras, mas as presenças de seus realizadores no espaço do festival, que é um espaço de formação", afirma Amaranta Cesar, idealizadora e coordenadora artística do festival, por e-mail.


Sendo um espaço de formação, o CachoeiraDoc se preocupa com a "diversificação e descolonização do povoamento dos espaços de cinema", como também aponta Amaranta. Não à toa, dos 52 filmes inscritos em 2020, 29 são dirigidos por mulheres e 31 são dirigidos por pessoas negras. Segundo o curador Fábio Rodrigues esses não eram critérios pré-estabelecidos para a seleção das produções, mas a própria composição da comissão do festival (majoritariamente formada por mulheres e pessoas negas) conferiu essa característica à curadoria do CachoeiraDoc. Fábio também destaca que isso faz parte da relação do evento com Cachoeira e o Recôncavo Baiano, território "negro e feminino".


A pandemia COVID-19 impediu que o festival acontecesse presencialmente em maio, a data original. Felizmente a recepção do público ao formato virtual foi positiva. A decisão de exibir 13 filmes presencialmente levou em conta o fato de que a conexão de internet em algumas das localidades de Cachoeira inviabilizava o acesso a todas as atividades online. A equipe, então, realizou sessões em casas em Cachoeira e Santiago do Iguape com todos os cuidados necessários onde as famílias escolhiam os filmes que desejavam assistir e depois conversavam sobre o que tinham visto. Para a coordenadora pedagógica do festival Ana Rosa Marques, "é o cinema nos ajudando a manter os laços com essas pessoas, mas é uma forma da gente também fruir o cinema de outras maneiras, sem a solenidade que uma sala de cinema muitas vezes impõe." Confira a entrevista na íntegra abaixo.


No vídeo da celebração de abertura do IX CachoeiraDoc, uma fala de Makota

Valdina, a homenageada desta edição, ressoou: “Não olhem [esse evento] só

com olhar de cineastas!”. Nesses nove anos de CachoeiraDoc, de que maneira

vocês buscaram e buscam ir para além do cinema?


Amaranta Cesar (idealizadora e coordenadora artística) - Orientada por uma dimensão ética da estética e da política, as ações de curadoria e programação que construímos ao longo de nove anos de festival buscaram criar vizinhanças não apenas entre os filmes, mas entre os filmes e as pessoas, entre a vida e o cinema.


Construímos nossa programação considerando, além dos pressupostos estéticos implicados nas obras, mas as presenças de seus realizadores no espaço do festival, que é um espaço de formação. Então, temos montado uma programação escolhendo obras em função da aposta na diversificação e descolonização do povoamento dos espaços de cinema. E esse princípio tem nos conduzido a momentos muito ricos em que pensamentos e vidas normalmente apartadas do cinema interpelam o cinema a se repensar, com elaborações críticas e inteligências oriundas de outros campos de saber – o movimento indígena, as ocupações urbanas, o movimento político-cultural da juventude negra. Um exemplo disso foi da presença de Zica Pires, jovem da comunidade do quilombo de Santa Rosa, do Maranhão, em debate online na última quinta-feira. Ao falar sobre o filme do qual participa, O mundo preto tem mais vida, ela nos falou de modo arrebatador sobre noções de vida e morte que desafiam o

pensamento moderno, ocidental, cristão.


Nos últimos anos, buscamos nos filmes os sinais da diversidade da vida neste país, como um modo de afirmação e defesa da vida, contra o avanço de novos movimentos de opressão e violência institucional como operadores de mortes. Há dez anos, quando criamos em Cachoeira um festival marginal de cinema documental, a UFRB, recém-inaugurada pelo governo Lula, exalava a energia de um futuro em construção. Comprometidos com o projeto de emancipação que deu origem a esta universidade que abriga e catalisa o festival, o lugar para o cinema que temos buscado construir é um espaço de contraposição às políticas de apagamentos – materiais e simbólicos –, mas é também, e sobretudo, um terreno de afirmação da vida.



O festival conta com seleção de 52 filmes de diversas partes do Brasil. Uma reportagem publicada no site do festival salienta que 29 deles são dirigidos por mulheres, 16 são assinados por profissionais da Bahia e 31 são dirigidos por pessoas negras. Esses recortes foram levados em conta na seleção? De que forma eles se relacionam com os temas dos documentários e com a proposta do festival como um todo?


Fábio Rodrigues (curadoria) - Sim, de certa forma esses recortes são levados em conta, mas não de uma forma direta. Ou seja, não havia uma estrita preocupação com isso, de conferir os dados nas fichas de inscrição ou de ter isso como uma meta. Em resumo, isso não era um critério posto, mas estamos falando de uma comissão também muito diversa, com diferentes trajetórias, marcadores sociais, majoritariamente formada e coordenada por mulheres, por pessoas negras, e são pessoas com interesses em transformação do cinema.


Algo importante para pensarmos nessa questão é a metodologia de curadoria que partilhamos, o contexto histórico e territorial desse festival e, finalmente, o contexto de construção dessa edição. Começaria dizendo que tivemos o maior número de inscrição de todas as edições do festival, justamente quando não temos mais uma mostra competitiva. Isso é bem importante. Ao todo eram 715 filmes inscritos! Ora, recebemos esses filmes no começo do ano e atravessamos 2020, esse ano doloroso, com essas imagens. O fato de não chegarmos a esse conjunto para criar dele uma mostra competitiva nos abria a uma outra relação com esses filmes, sendo que o que temos e o que é a mostra de documentários brasileiros, a “Futuro, como presente, no passado”, é muito guiada e concebida a partir dos caminhos que os filmes nos ofereciam e, claro, de um certo encontro de desejos, mas muito de reinvenção de desejos no encontro (entre nós, entre nós e as imagens, entre tempos, etc.).


Sabíamos que não se tratava e não é o caso de dizer que esses são os melhores filmes do conjunto, mas tínhamos por interesse efetivamente propor um olhar, um certo caminho, que tem a ver com nossos interesses singulares mas também coletivos. Acho que essa curadoria foi um mergulho coletivo num conjunto amplo temporalmente (tínhamos filmes de 2018 a 2020), plural e surpreendente, mergulhamos sem saber o que criaríamos, sabendo apenas que criaríamos algo junto com as imagens, com nós do grupo e que criaríamos efetivamente algo novo para o próprio festival.


Bom, aí eu acho que é preciso comentar que se por um lado é algo novo, por outro segue aquilo do qual o festival não pode se afastar, que é a relação com Cachoeira, com o Recôncavo, que é um território negro e feminino. Portanto, esse contexto territorial que o festival é fundado e onde ele está inserido, inevitavelmente implica uma certa perspectiva e posicionalidade. Felizmente, quando olhamos o conjunto de filmes inscritos no CachoeiraDoc vemos filmes com múltiplos endereçamentos, muitos deles, aos seus modos, engajando-se nas mais diversas lutas sociais. Isso, portanto, é sobre um contexto do próprio festival, um engajamento dele, uma responsabilidade que ele assume e, me parece, que o conjunto também provoca.


Não sei em que medida tudo isso responde a questão, mas o que eu queria dizer é que efetivamente não tem uma só resposta, é uma constelação, tem a ver com contextos - do conjunto de inscritos, inclusive, onde já havia uma maioria de filmes baianos inscritos (19,X%) -, tem a ver com reconhecimento das forças imanentes e de mobilizações desses filmes, tem a ver com uma implicação e posicionamento nosso da equipe, equipe ela mesma diversa e

para além das margens do Paraguaçu, tem a ver com desejos, com a cidade de

Cachoeira e finalmente com aquilo que neles, nos filmes, provoca as categorias,

expande a ideia de documentário e movimenta sentidos para o cinema.


Como a equipe do CachoeiraDoc se organizou para realizar o festival quase

totalmente online? E como está sendo a adesão do público ao formato virtual?


Fernanda Pimenta e Leonardo Costa (coordenadores de produção) - A equipe ficou bem triste e angustiada com o fato de não podermos fazer o evento de maneira presencial. Ainda mais com o agravante que a última edição ocorreu em 2017... Em maio, quando aconteceria o Festival este ano, fizemos uma edição especial que chamamos de Festival Impossível, Curadoria Provisória. Na ocasião a curadoria escolheu nove curtas-metragens que tiveram 6300 visualizações, em 15 dias, e mais de mil pessoas assistiram aos dois debates sobre a curadoria.


Tivemos que negociar longamente com a Secretaria de Cultura da Bahia para

mudarmos o formato do Festival, para que fosse online. Uma das mudanças grandes foi que criamos um pagamento para exibição dos filmes, que consideramos uma inovação importante nesse momento, já que os realizadores audiovisuais foram extremamente afetados no período da pandemia.


A adesão do público tem se mostrado interessante neste formato. Até o momento já tivemos mais de mais de mil inscritos no canal do YouTube - uma ferramenta que não era o nosso principal veículo em edições anteriores. A celebração de abertura, na qual o Nzo Onimboyá recebeu Mateus Aleluia, já tem quatro mil visualizações. Temos uma média de 300 visualizações nos debates e conferências, e uma crescente de visualizações dos filmes. (N.E.: a entrevista foi realizada no dia 13 de dezembro)



Como se deu a decisão de realizar sessões presenciais de 13 filmes da

seleção? 


Ana Rosa Marques (coordenadora pedagógica) - Uma das principais (e mais queridas) características do CachoeiraDoc é seu vínculo com o território, temos uma forte ligação com as pessoas do Recôncavo e sempre desenvolvemos atividades com elas, em todas as edições do festival e ao longo de todo o ano. Mas 2020 nos obrigou a repensar o festival também para esse público, pois se de um lado o contexto pandêmico nos obriga um distanciamento social, por outro as atividades inteiramente online são mais inacessíveis por conta da qualidade da Internet nessas localidades.


Então retomamos e ajustamos um projeto chamado Cinema em Vizinhança, concebido e realizado na nossa edição de 2017, por estudantes ou formados pela UFRB, no qual vamos à casa de algumas famílias que já conhecemos em Cachoeira e também em Santiago do Iguape, quilombo que fica na zona rural do município e quem tem espaço suficiente em suas casas para poder nos receber para uma sessão de filmes. De máscaras e com a distância física necessária, as famílias escolhem os filmes que querem assistir, montamos os equipamentos de projeção, vemos juntos e conversamos. É o cinema nos ajudando a manter os laços com essas pessoas, mas é uma forma da gente também fruir o cinema de outras maneiras, sem a solenidade que uma sala de cinema muitas vezes impõe.


O CachoeiraDoc assume uma posição contra-hegemônica desde seu início.

Como essa postura se relaciona com o lugar em que ele tradicionalmente

ocorre, “na periferia da periferia”? E como essa postura evoluiu no ambiente online, com oficinas e debates acessíveis a mais pessoas?


Amaranta Cesar (idealizadora e coordenadora artística) - Desde meados dos anos 2010, comemoramos o surgimento de uma multiplicidade de realizadores e produtores de filmes, cujas experiências de vida, estudo e profissão estão vinculadas a posições históricas diversas, que não apenas tensionam a cena contemporânea, mas também incitam a revisão da história do cinema brasileiro. A vinculação à Cachoeira e à UFRB, universidade negra e popular, nos permitiu construir uma perspectiva crítica, atenta a esse novo povoamento contra hegemônico que sobrevive ao modo online.

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